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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Minha crônica preferida:

OS FÍCUS DO SENHOR

"É uma crônica de 1943 e não é tão inédita que não tenham sido publicadas em duas revistas. Mas ambas circulavam quase às ocultas e foram fechadas depois pelo governo. A crônica pode ser má, e creio mesmo que está mal escrita, de um modo diferente do meu modo costumeiro de escrever mal. Mas naqueles tempos já era grande coisa quando se conseguia escrever alguma coisa que não fosse louvaminhas ao Senhor; e quando se escrevia era ao mesmo tempo com raiva e contensão, duas circunstâncias que atrapalham qualquer estilo, e ainda mais o meu, que se atrapalha à toa. Talvez por isso mesmo reli com uma espécie de carinho e resolvi publicar outra vez."

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Ninguém pode amar mais do que eu essa cidade do Rio de Janeiro. Ó grande beleza de cidade, ó cidade que é vinte, trinta quarenta cidades imprevistas, uma infiltrada na outra, esta mais colonial que Ouro Preto, aquela mais nova que Goiânia, uma de alta montanha, uma de oeste de Minas, uma toda de praia, outra de casarões de arvoredo - ó ruas estranguladas entre mares e morros, recantos e esplanadas, cartões-postais baratos e segredos de esquinas sutis, avenidas afogadas em sol e ladeiras de húmus esquecidos - cidade de minhas tantas agonias e felicidades, palcos de velhas inquietações, canais de silenciosa aventura, blocos de cimento que me esmagaram, praças de humilhações, arrabaldes de exaltações líricas - minha medíocre história anda escrita em tuas ruas e nenhuma entre as cidades é mais formosa do que tu, nem sabe mais coisas de mim.
Entretanto muitas coisas em ti me aborrecem de maneira quase dolorosa - e nada em ti e em outra cidade me aborrece tanto quanto a humilhação do fícus.
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A cretinice é uma árvore chamada fícus. Um jardineiro sádico, de instintos miseráveis - um jardineiro que era bem, na sua crueldade e mesquinhez, o perfeito rei dos animais - inventou a degradação do fícus. Eis uma árvore. Se a deixais crescer, ela cresce. Não vos pede ajuda - quer apenas a terra, a água, o ar - e vai crescendo. E o tronco se projeta alto e grosso da base de um encordoamento enérgico de raízes encravadas no chão, e os galhos partem oblíquos, e vão lançando ramas, e eis uma árvore nobre entre as mais nobres, grande, bela e poderosa.
Mas o fícus é apenas um arbusto - o mesquinho rei dos animais e dos vegetais tem uma tesoura na mão. Esse arbusto jamais será uma bela árvore. Ide à Praça Paris, olhai o jardim, e tremereis de vergonha. Ali não há árvores. Há cubos, há caras de cão, pirâmides, paralelepípedos, poltronas, esferas; se quiserdes haverás telefones, sopeiras, cilindros, qualquer bicho e qualquer objeto, escarradeiras ou focas - tudo o que quiserdes. Basta ter na mão uma tesoura - e saber.
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Escrevendo outro dia a um velho amigo me ocorreu lembrar que os animais se domesticam facilmente com um chicote na mão direita e um torrão de açúcar na esquerda. Os vegetais querem tesoura e estrume. O homem é o rei da Criação.
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Entre os homens às vezes há reis. E quando é Rei de fato - eia, eis, alalá, heil, banzai! - quando é rei de fato com ou sem essas exclamações, ele monta a sua máquina de mandar. São máquinas monstros de mil compartimentos complexos - masmorras e picadeiros, com aparelhos de metralhadoras, microfones, casa de moedas e medalhas, jornais, uniformes, bandeiras, talentos, alicates de arrancar unhas e técnicos em festinhas escolares, foguetes, benemerências - se a quisésseis conhecer, toda essa engrenagem de aço e sentimentos, de ouro e vaidades, de bem-aventuranças fáceis e torturas facílimas, haveríeis de gastar uma vida, e não conseguiríeis. Afinal tudo é simples, tudo é chicote e torrão de açúcar, tudo é tesoura e estrume.
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Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibile no ar - para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam para lamber farelos de açúcar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão espetáculos graciosos. E a degradação humana sob o fascismo ora é brutal ora é sutil - e se abre um estranho picadeiro de feras avacalhadas sob o mesmo círculo de assistência que se bestifica e abre um estranho picadeiro e bate palmas porque até o silêncio é um crime - e a floresta magnífica dos homens se muda em praça paris com sofás de fícus e caixas de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuvas de fícus, toda uma alucinação idiota de formas obedientes e escravas - de fícus.
Cortai a tesoura e serrote as folhas e palmas de uma palmeira, cravai-lhe no tronco o machado - ela não vira borboleta, nem vaso, é uma palmeira que morre, uma coluna partida, pois a árvore mutilada guarda a sua dignidade de árvore. Sob qualquer fascismo há homens assim. E há outros que não são altos e fidalgos como esses mas na sua medíocre existência também resistem às humilhações com um obscuro instinto da luz e da altura e em cada ramo decepado a seiva incorruptível lança na mesma direção um renovo obstinado que a tesoura há de cortar outra vez. A tirania do jardineiro os mutila, eles não têm meio de reagir, são despojados de tudo menos a riqueza do cerne. Há os que se adaptam mas não se acostumam, se submetem mas não se servilizam, os vencidos jamais convencidos. E há os fícus.
Os que poderiam ser gigantes, e gostariam de ser gigantes e sentem com amargura e revolta o primeiro corte da tesoura. Mas o tempo passa, a vida é curta e a tesoura é certa. Então o desgraçado já não espera a tesoura. Ele mesmo fica sendo sua própria tesoura. Não é mais necessário que o oprimam de fora, ele se espreme por dentro e distribui a seiva para os galhos em curvas e todo se modela em forma de poltrona para o perfeito assento do Rei.
Que as forças mais profundas da terra se revelem numa espantosa arrebentação, num terremoto de raízes revoltadas, e a floresta dos homens se embebe com os uivos do vento e as águas da tempestade, e se contorça e se enfureça num bracejar medonho de galhos subitamente libertados e caia por terra, pisado e esmagado, o rei da tesoura e do estrume, do chicote e do torrão de açúcar. Não adianta. Aquele que fícus já viveu demais - e silenciosamente no recesso da floresta, ele continuará a alisar e proteger, numa luxúria de ramos curvos e folhagem macia, a imaginária bunda do Senhor.
Rubem Braga, agosto, 1946

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