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sábado, 31 de março de 2012

Manuel Bandeira sim, Manuel Bandeira mesmo, Manuel Bandeira muuuito!

Mulheres

Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isso:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...´

És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso  preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro detrás de casa e tinham cara de pau).


Mais uma folheada no livro de poesias

O CACTO

Aquele cacto  lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constragido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados,
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra
de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pelo raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fornteiro,
Impediu o trânsito de bondes,  automóveis,  carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quantro horas privou a cidade de iluminação e energia:
-Era belo, áspero, intratável.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Mais Manuel Bandeira


A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer o teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda.
- Sem deixar sequer esse nome.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A MULHER ESPERANDO O HOMEM

     O tema da mulher esperando o homem há muito, muito tempo me fascina; sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romance, talvez quadro de pintura, talvez música. E eu que não sei fazer nada disso sou, entretanto, perseguido por histórias de mulher esperando homem, das mais banais às mais terríveis.
     Agora mesmo, quando passou o aniversário da revolução húngara, eu me lembrei que de todos os relatos, alguns dolorosos, horríveis, de gente que fugiu da Hungria, havia o de uma mulher que contou com simplicidade sua história; e foi o que mais me impressionou quando o li, de madrugada, no meu quarto de hotel em Nova York. O marido saíra para a revolução e lhe disse que ela não saísse de casa de maneira alguma, esperasse sua volta. Chegou a noite e ele não veio; passou a noite inteira acordada, e ele não veio; no outro dia entraram na rua tanques russos atirando, e veio outra vez a noite, e veio outro dia, e veio outra noite, e ela esperando; cochilava um pouco sentada, acordava assustada julgando ouvir os passos ou a voz dele, até que chegou por um parente a notícia de que ele morrera.
     Ela então saiu de casa e - “como eu não tinha mais nada que esperar”, segundo disse - fugiu para a fronteira da Áustria.
     Não sei por que, achei que essa mulher sentiu um alívio ao saber que não devia esperar mais; acontecera, naturalmente, o pior. Mas a angústia de esperar cessara.
     O homem ausente era como um carcereiro que a prendia no lar transformado em câmara de torturas. Ela agora estava desgraçada, mas livre.
     Mas não é preciso haver guerra nem nenhum perigo; nesta madrugada em que escrevo, em Ipanema, quantas mulheres não estarão esperando os maridos? Aquela pequena luz acesa em um edifício distante é talvez o apartamento da mulher insone que já telefonou meio envergonhada para várias casas amigas perguntando pelo marido, que já olhou o relógio vinte vezes e tomou comprimido para dormir, ligou a Rádio Relógio, tentou ler uma revista velha, fumou quase um maço de cigarros.
     Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também completamente vulgar. Neste momento ela é a mulher esperando o homem; e todas as mulheres esperando seus homens se parecem no mundo, e se ligam por invisível túnel de solidariedade que atravessa as madrugadas intermináveis.
     Todas: a mulher do pescador, a mulher do aviador, e a do revisor de jornal, a do milionário e a do ministro protestante…
     Devia haver um santo especial para proteger a mulher esperando o homem, devia haver uma oração forte para ela rezar; ela está desamparada no centro de um mundo vazio.  
    Ela começa a odiar os móveis e as paredes; a torneira da pia lhe parece antipática; a geladeira, que aliás precisa ser pintada, é estúpida, porque ronca de repente e depois o silêncio é mais quieto. A cama é insuportável.
     Devia haver um número de telefone especial para a mulher que está esperando o homem chamar, reclamar providências, ouvir promessas, insistir, tocar outra vez, xingar, bater com o fone. Devia haver funcionários especiais, capazes de abastecer essa mulher de esperança de quinze em quinze minutos, jurar que todas as providências já foram tomadas, “estamos seguros de que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à senhora…”
     E diria que pelo menos no necrotério ele não está, nem no Pronto socorro, nem em delegacia nenhuma; mas não diria isso de uma só vez, e sim através de informes espaçados, que fossem formando etapas de ansiedades, que quadriculassem lentamente a insônia.
     A mulher que está esperando o homem está sujeita a muitos perigos entre o ódio e o tédio, o medo, o carinho e a vontade de vingança.
     Se um aparelho registrasse tudo o que ela sente e pensa durante a noite insone, e se o homem, no dia seguinte, pudesse tomar conhecimento de tudo, como quem ouve uma gravação numa fita, é possível que ele ficasse pálido, muito pálido.
     Porque a mulher que está esperando o homem recebe sempre a visita do Diabo, e conversa com ele. Pode não concordar com o que ele diz, mas conversa com ele.
(Rubem Braga – Novembro 1957)