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sábado, 26 de fevereiro de 2011

Uma ano sem carnaval é um ano perdido - Eu sou um folião

Terceira e última das 3 crônicas de Rubem Braga sobre o carnaval que vou publicar, a única que acho relevante mesmo mostrar, as outras são mais para formar o contexto, o velho Braga suga a alma do carnaval, que todos nós já sentimos. Você acredita que eu não achei o texto na internet e vou ter que digitar tudo.

Carnaval

   Incipiente alegria na tarde carnavalesca. Os sambas passam nos automóveis abertos. Um vento beija a avenida larga, tremula nas serpentinas, rodopia nos confetes, caminha na voz das cantigas. As moças lindas, em fantasias de cores vivas e leves, vão com os cabelos alvoroçados pelo vento. Meu amigo comprou 200 gramas metálicas. Andou pelas ruas que se animavam. Encheu os bolsos de confetes. Foi andando...
   E na boca da noite vieram cordões, ranchos, blocos, bandos. A multidão encheu as ruas que a noite engoliu. Mas as luzes rebentaram de todos os lados e a garganta da massa se abriu em delírio. Meu amigo foi andando. Apertou-se entre homens excitados e mulheres que cantavam e riam. Entrou na confusão das raças irmanadas pelo prazer comum da carne. Alguém lhe jogou confete na boca, lança perfume nos olhos. Uma serpentina bateu em seu nariz. Um reco-reco gritou em seu ouvido. Foi andando. Um automóvel do corso quase o esmagou. Uma mulher qualquer cantou a toa, para ele, uma frase de samba. Jogou um pouco de confete nos cabelos da mulher. Jogou-lhe éter no corpo. Ela defendeu-se e riu. Depois desapareceu arrastada. Meu amigo foi andando. Tinha um cravo na lapela, um cravo que tirara da mesa do restaurante. Uma mulher pediu a flor. Ele a encharcou de éter e fez presente. Foi andando. Automaticamente cantou sambas e marchas. Teve mil aventuras inconsequentes e rápidas. Um homem bêbado quis arrebatar o lança-perfume de sua mão. Foi andando, No meio de uma confusão No meio de uma confusão, recebeu e distribuiu socos e empurrões sem saber de quem, para quem, por que, nem para quê.
   Meu amigo entrou no baile. Agarrou-se ao ombro de uma mulher e foi no cordão, dançando, cantando, suando. Repetiu três vezes com o mesmo par a marchinha do momento. apaixonou-se de repente por uma fantasia, por um corpo, por uma risada. Bebeu.
   Meu amigo foi a outro baile.
   De madrugada meu amigo saiu pela rua vazia, sem programa. Passavam os foliões cansados, as mulheres mais belas pela fadiga e pelo suor. Um homem grisalho carregava pelo braço um adolescente que se queixava de dor no pés. Meu amigo arranjou uma mulher: a mulher que sempre aparece. A mulher que não vimos na rua nem no baile e que aparece na mesa do restaurante, no último instante. Esguichou seu último lança-perfume nos braços e seios da mulher. Jogou os últimos confetes em seu cabelo. Ela repetiu um samba mil vezes repetido.
   Foram. No caminho meu amigo parou. No canto da calçada, um menino sujo e esfarrapado dormia. Dormia sobre um saco cheio de serpentinas que juntara pra vender. Pararam. A mulher disse: coitadinho... Meu amigo olhou em silêncio o menino que dormia. Sentiu pena. Olhou a mulher. Balançou a bisnaga. Ainda havia um resto de éter. Jogou na perna da criança, que acordou assustada. A mulher disse: você é ruim! coitadinho... A criança ficou olhando estremunhada, resmungou um xingamento e tornou a dormir. Meu amigo jogou a bisnaga no asfalto. Sentia-se bêbado. Apertou a mulher contra seu corpo e mandou parar um automóvel que passava. No apartamento, antes de deitar-se, olhou-se no espelho do guarda-roupa. Fantasiado. Exausto. Beijou a mulher como se beija uma noiva. E pensou desanimado: eu sou um folião. Evoé!
-São Paulo , fevereiro, 1934


Rubem Braga em A borboleta amarela


Evoé: tradicional grito de evocação a Dioniso, deus do vinho

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Aqui no Cerrado é época de panã

E de pitomba


E o pessoal mais ao sul nem conhece do que estou falando: murici, cagaita, mangaba, cajá, umbú, ciriguela, pintanga (da roxa e da vermelha), coquinho azedo, coco macaúba, uma ameixa amarela (que desconfio que tem outro nome), hum e aquele jambo de casaca amarela docinho, que é só uma casca com um caroço solto dentro, ai, ai, como é doce o meu Cerrado, ou melhor, ele tá mais pra azedinho. 


segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Nelson Rodrigues - o anjo pornográfico


Adoro o final deste texto, Nelson Rodrigues, sempre macabro

Beijo no telefone

Caiu das nuvens:
   -Você é casada?
   E ela:
   -Não sabia?
   Põe as mãos na cabeça :
   -Nem podia imaginar. Mas casada mesmo, no duro?
   Sorriu, refazendo a pintura:
   -Casadíssima!
   Estavam numa sorveteria. Depois do breve lanche. Angelita passara batom nos lábios, Sérgio paga a despesa, ainda impressionado. Levanta-se e sai com a pequena. Lá fora ele continua:
   -Pois olha: estou besta, ouviu? Com minha cara no chão! E sabe o que é que me espanta, em vocês, mulheres? É a naturalidade! Você encontra-se comigo, anda comigo e nem parece!
   Pararam na esquina. Antes de se despedir, Angelita ergue o olhar sereno:

   -Faz diferença?

   Vacila:
   -Bem. Fazer diferença, não faz. Em todo caso acho gozadíssimo.
   Três dias antes, ele vinha passando, de automóvel, quando a viu, numa fila de ônibus. angelita tinha vinte anos e aparentava muito menos. Havia nela, na sua figurinha e modos, algo adolescente. Foi esta frescura de menina e de mulher que o atraiu. Sérgio arriscou um convite. Não houve resistência. Imediatamente, Angelita abandonou a fila, sentou-se, na frente, ao seu lado. E o automóvel - um conversível - arrarncou, numa velocidade macia, quase imperceptível. Cinco minutos depois, a camiho de Copacabana, pareciam íntimos. Conversaram sobre muitos assuntos, mas não coincidiu nenhuma referência ao estado civil de ambos. Sérgio a deixou numa esquina da avenida Atlântica, com um encontro marcado para o dia seguinte. E, assim começou o romance. Na terceira vez, ele, sabe, com imensa surpresa, que Angelita erra casada. Baixa a voz:
   -Posso te fazer uma pergunta?
   -Claro!
   E ele:
   -É a primeira vez que faz isso?
   -Evidente!

uma opinião
   Deixou a pequena e encontra, mais adiante, seu amigo Queiroz. Arrastou-o para uma mesa de bar. Conversa vai, conversa vem, e resume para o amigo o novo romance. Termina num desabafo:
   -Não gosto de mulher casada, percebeste? Acho meio chato!
   -Por quê?
   -Pelo seguinte: ela trai o marido comigo; e me trai com o marido, Tipo da mágica besta!
   O amigo foi cínico, foi brutal:
   -Ora, não amola! E te digo mais: nada como mulher dos outros, a mulher alheia! Deixa de ser burro e mergulha de cara!
   Restava o problema do medo:
   -E se o marido for violento? Se me der um tiro?
   O outro achou graça:
   -Ninguém dá mais tiro em ninguém! Hoje, o sujeito sabe e finge que não sabe! Vai ver que o mairdo da tua pequena quer sombra e água fresca!
   -Sei lá, rapaz, sei lá!
   Continuavam com os encontros, com os passeios. Mas Sérgio era uma vítima de seus próprios escrúpulos. A princípio, fez, de si para si, os seguintes cálculos: "Vai ver que o mairdo a trata mal, não a compreende!" Sondou a pequena. Angelita porém o desiludiu: "Ele até que me trata muito bem e me dá tudo." No seu espanto, Sérgio pergunta: "Mas vem cá. Explica um coisa." Pausa e prossegue:
   -Não te dói, não te dá remorso fazer isso?
   Protesta, aborrecida:
   -Mas isso não é nenhum bicho-de-sete-cabeças, carambolas! Francamente, não sei por que você está fazendo esse cavalo de batalha!
   E ele:
   -Não é cavalo de batalha. Afinal de contas, é seu marido, você se casou com ele!
   Angelita perdeu a paciência:
   -Quer saber uma coisa? Você já está enchendo com esse negócio! Ele não é o primeiro marido enganado, nem o último! Responde apenas uma coisa: você me quer ou não me quer?
   Teve subitamente o medo de perdê-la. Balbuciou:
   -Quero!
   Então já sabe: fala de mim, fala de ti, mas não fala do meu marido. Combinado?
   Admite:
   -Sim.

lua-de-mel
   Foi uma lua-de-mel de novela, de filme. Três vezes por semana, Sérgio vinha buscá-la, depois do almoço, de automóvel. A menina e o automóvel partiam , a toda velocidade, numa espécie de fuga. Dir-se-ia um rapto maravilhoso. Iam para uma pequena casa, de paredes brancas e janelas azuis, que Sérgio alugara na Gávea. Passavam, lá, de cada vez, três ou quatro horas delirantes. De vez em quando, ocorria-lhe idéias voluptuosas: "Vem sem calça amanhã, vem! Saia de colante e sem calça." E a felicidade de Sérgio só não era absoluta por causa do outro, do marido. A existência de um traído, de um enganado, era algo pertubador. Angelita parecia esquecida de tudo e de todos. Mas esse abandono não a impedia de controlar o tempo. Às seis horas, erguia-se: "Preciso ir, preciso ir." O marido chegava em casa às oito horas, quase sempre. Angelita fazia questão de estar, lá, para recebê-lo. Às vezes, Sérgio queria retê-la:
   -Fica mais um pouco. Dez minutos, Fica!
   Corria nua para o banheiro:
   -Não, não. Está na hora. Tenho de ir

no telefone
   Viveram assim uns três meses. E a única restrição que ele fazia à pequena era sua absoluta naturalidade no pecado. E, com efeito, nada turvava a sua felicidade. Ele não compreendia que uma esposa pudesse trair, assim, sem pena, sem dor, sem remorso. Uma tarde, porém, os dois pareciam mais enamorados do que nunca. Foi como se, de repente, tudo tivesse deixado de existir. Perderam noção de tempo, de espaço; e houve um momento em que apertando o rosto do ser amado, entre as mãos, Angelita teve um soluço: "Eu queria morrer agora! Num momento assim!" Era tarde. E, de súbito, ela apanha o relógio de pulso, na mesa-de-cabeceira. Toma um susto: "Já?" Vira-se para Sérgio: "Oito horas!" Levanta-se e faz seus cálculos: àquela hora o marido estaria em casa. Pergunta: "E agora?" Ainda imerso no sonho ele balbucia: "Inventa uma desculpa!" Ao lado da cama estava o telefone. Nervosíssima, Angelita disca. Do outro lado, atende uma voz masculina. Era ele, o marido. Com uma das mãos, Angelita segura o fone; com a outra, puxa a cabeça de Sérgio. Seus rostos estão unidos. E ela fala com o marido:
   -Meu bem. eu estou aqui, na casa da fulana, ouviu? E vou chegar um pouquinho mais tarde.
   O esposo faz um comentário qualquer. Angelita ri e continua:
   -Não desliga, já, não, que eu quero te dar um beijo gostoso, daqueles. Está ouvindo?
   A boca de Sérgio está bem perto. Ela aproxima, mais e mais, o telefone. Une os seus lábios aos do amante, num beijo estaladíssimo. Fala de novo:
   -Você ouviu? Gostou? E olha: vou já, chispada!

idéia fixa
   Quando larga o telefone e olha para Sérgio, toma um susto. Com um esgar de nojo, ele passa as costas da mão na boca, como que para limpá-la da lembrança de todos os beijos. Em seguida, põe a cabeça para fora da cama e cospe no chão. Sem entender, Angelita faz espanto: "Que é isso!" E ele, em pé, no meio do quarto, crispado de ódio:
   -Não quero mais teus beijos! Nunca mais! Tenho nojo de ti! - e soluça: -Cínica! Cínica!
   Angelita teve que sair, dali, às pressas, escorraçada. E, então, aconteceu o seguinte: aquele moço rico e bonito, que viva conquistando uma e outra, nunca mias beijou uma mulher. Encerrou-se em casa. Mas se via, da janela, uma menina, uma senhora, uma moça, torcia-se de náuseas medonhas. Primeiro, odiou uma mulher determinada; depois, todas as outras; e por fim, a própria vida.