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terça-feira, 1 de maio de 2012

DA VULGARIDADE DAS MULHERES

   DEUS sabe que no fundo de meu coração eu nada tenho contra as mulheres, que na catedral de minh'alma elas estão colocadas, pelo amor ou pela amizade, em altares de prata e ouro, coroadas de flores de ternura e adoração; Deus bem sabe.
   Mas não desçamos ao fundo dos sentimentos; sou um escritor superficial, o último talvez deste país cada dia mais transcendente e sublime; pois sempre que leio os novos sinto que eles são tão profundos que só caçam suas imagens com fuzis submarinos; seu traje de passeio, deles deve ser o escafandro. Essa comparação funciona dos pés a cabeça, com exceção dos óculos. Pois se o mergulhador moderno usa óculos que lhe permitem ver nítido o fundo do mar o escritor moderno usa óculos que lhe oferecem refrações e distorções infatigavelmente. Hoje é bem vulgar escrever "uma casa branca". A casa deve ser "desconsolada" ou "pálida" ou "morna" ou "inefável" ou "de nuvens oblongas" ou "mineral de malmequeres" ou o diabo que os carregue.
   Mas não falemos mal de nossos irmãos das letras; urge falar mal das mulheres já de natural desfrutáveis, como sejam senhoritas pedantes e velhotas gaiatas. O que vamos dizer se entende com todas e especialmente com as mais distintas, inteligentes, belas e superiores.
   Mas valerá a pena e será, pelo menos, justo? Isso me inquieta. É perante o espelho que a mulher engendra sua maior toleima. E que é o espelho da mulher? O homem é o espelho da mulher. A vulgaridade talvez seja toda nossa. Nem sempre, é verdade. Não fomos nós os homens, que inventamos, a esta altura dos acontecimentos, a saia nas canelas. A culpa aí é da impotência imaginativa, do esgotamento profundo de alguns indivíduos do sexo intermediário residentes em Paris. Da Austrália a Bangu milhões de senhoras e senhoritas apressaram-se a adotar essa moda, que prejudica as pernas bonitas e faz ridículas as feias. Amanhã "eles" resolverão que as nossas damas devem pintar as unhas de amarelo e ninguém discutirá. Toda a discussão será entre o amarelo-canário, o amarelo-fulvo, o amarelo-gema e o amarelo-sezões - mas todas, todas as mulheres, até as mais dignas, até as mais sadias, até as mais honradas, terão as unhas amarelas.
   Não importa que eu não goste, você deteste e aquele outro ache horrível. Não é para mim, nem para você, nem para ele que a mulher faz essas coisas ridículas. É para nós, os homens em geral. É para um tipo convencional de homem, um monstruoso tipo de homem inventado não sei onde, e que resume a vulgaridade de todos os homens - tudo que há de mais barato, de mais basbaque e de mais cretino na multidão dos homens. A mulher imediatamente rifa sua personalidade para agradar a esse homem-padrão, que em troca lhe dá mais olhares e assobios.
   Somos nós, talvez, um pouco mais dignos. Mandaram-nos do estrangeiro gravatas e calções de banho de mil cores, cheios de figuras, paisagens, borboletas e flores. Não tomamos conhecimento disso; permanecemos decentes e calmos no vestir. As mulheres seriam incapazes de uma tal dignidade. Colocariam uma flor vermelha atrás, à altura da anca direita - se vissem isso numa revista de modas.
   Algumas senhoras precisam pintar os cabelos, e não condeno as que fazem com descrição. Riscar sombrancelhas, dobrar cílios, lambuzar as pálpebras, acentuar as olheiras, tingir as unhas, a cara, a boca - tudo estaria normal se fosse uma delicada e discreta providência no sentido de corrigir algum desfavor da natureza ou injúria do tempo. Se fosse, em suma, um esforço no sentido da beleza normal. Mas o que acontece é o contrário. As mulheres que têm a beleza natural nesses detalhes passam a imitar a máscara idiota - brilhante, colorida, artificial e vulgaríssima, que é a máscara da moda. A que... agrada "aos homens".
   E isso tudo acaba entrando na própria alma. Um amigo me contou ter conhecido uma mulher que tinha a alma de artista de cinema. Já que os homens adoram as artistas de cinema, deve ter refletido ela (e talvez, em toda a sua vida, só tenha se dado ao trabalho de refletir isso) - sejamos assim. Meu amigo conta: "Ela sorria com um certo mover de cabeça de Ingrid Bergman, tinha uma crise histérica e chorava desesperada como Bete Davis, e afinal me perdoava como Joan Crawford e me beijava como Lana Turner.
   Era uma  viciada que toda noite se metia numa sala escura - e quando a fita acaba saém para a rua como se entrassem para a tela; começam a fazer fita por conta própria. Quantas dessas madames bovarys de sessão das oito não andam por aí disfarçadas de gente?
   Não é, portanto, a arte que imita a natureza, nem o contrário. Acontece que a natureza imita... a imitação da natureza. É dentro do círculo idiota dessa paródia de beleza que a mulher de hoje aperfeiçoa sua vulgaridade internacional. Para isso ela perde o respeito pelo ritmo sagrado de sua própria beleza.
   Não tenho nada contra as girls americanas. (Pelo contrário, ah, tão pelo contrário!) Dentro da vulgaridade de suas repetições, elas têm bons elementos do clássico moderno. Mas as girls são como as vacas holandesas ou os bois shorthorn ou as árvores padronizadaas das ruas. São criaturas vivas selecionadas de acordo com certas qualidades específicas para um fim específico: dar mais leite ou mais carne ou mais sombra. São plantas ou animais cultivados artificialmente com finalidade única: são para um show. Isso limita severamente o tipo de sua beleza, ao mesmo tempo que o apura até o ideal - mas uma mulher de outro tipo de beleza que as imita é como um touro de corridas que usasse enormes orelhas postiças para imitar o zebu.
   Se você manda construir um barco de corridas de modelo regulamentar, dentro das regras e especificações próprias, está muito bem. Mas se você faz isso para pescar ou transportar bananas - você faz exatamente como a mulher que abdica da dignidade própria de seu tipo de beleza para se padronizar como a girl.
   É essa mentalidade de show que predomina.
   Predomina nas ruas, na hora mais vulgar, na vida mais sentimental mais barata e superficial. Os  homens adoram o show - como show: mas cada homem ama a sua mulher normal, feita de boa carne pessoal, do bom osso pessoal, e das curiosas cartilagens, e das encantadoras mucosas,  profundamente pessoais e intrasferíveis por mais que elas pelejem contra si mesmas com o seu espantoso gosto da vulgaridade.

Março, 1949.

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