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sábado, 16 de outubro de 2010

Wally Salomão


CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY
A memória é uma ilha de edição - um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.
Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?
A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queimas de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fonogramas estourados.
Que se importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?
Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda será esquecido o que traz
a marca d'água d'hoje.
Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães fila do tempo fazem arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozoniais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.
Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguda,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.
E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaços do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão de mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano
fardo.
Corrigindo:
                                    o humano fado.
Waly Salomão  em  "Algaravias"

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