A primeira de 3 crônicas de carnaval do velho Rubem que vou postar, a que mais gosto é a que vai ficar por último e deve sair antes do carnaval, uns dias antes da festa. Diamantina aí vou eu
Os Romanos
Rubem Braga, fevereiro de 1949
Foi no Leblon, no domingo de sol, e não era escola de samba
nem rancho direito, era apenas uma tentativa de rancho, sem
mulheres, sem música própria. Eram quase todos negros e
mulatos, quase todos muito fortes e vestidos da maneira mais
imaginosa, com saiotes e escudos e capacetes com muitos
dourados e prateados, e de espada na mão. Cantavam o
samba estranho “Maior é Deus no Céu” e no estandarte estava
escrito assim: “Henredo o Império Romano”.
Todos achamos graça nesse H que dava ao enredo, que afinal
não era enredo nenhum, uma súbita solenidade, sugerindo
graves palavras históricas e heróicas, hostes de hunos,
hierofantes, hieróglifos e hierarquias. E era muito guerreira a
marcação da bateria – e Júlio César, com seu capacete de
papel prateado de dois palmos de altura acima do pixaim, e
brandindo com o enorme braço negro uma espada de ouro,
nunca esteve tão soberbo na sua glória.
Não, não morreu o Império Romano, embora Mussolini fizesse
questão de suicidá-lo pela segunda vez. Ele rebenta soberano
do fundo dos carnavais e tu, Marco Antônio, continuas a
suspirar pela serpente do velho Nilo. E tu, Cleópatra, continuas
a dizer ao homem que envias para vigiar o teu amado: “Se o
achares triste, dize que eu estou dançando: se o achares
alegre dize que adoeci de súbito...”
E esses pretos e mulatos que hoje dominam o mundo com
suas espadas de bobagem, e se fazem Neros e Brutus e
Calígulas, são os mesmos que de súbito se precipitam
esfarrapados no “sujo” mais feroz – pois quando não são
imperadores preferem ser miseráveis terríveis e não os pobres
contribuintes da taxa sindical do ano inteiro.
A secreta gravidade e a espantosa riqueza do carnaval
chocam-se com essa arrumação extraordinariamente pífia que
os decoradores da Prefeitura fizeram na Avenida, em um
requinte de mau gosto que tenta ser popular e sendo apenas
ruim – e com a indigência mental desses carros alegóricos
subvencionados, sem espírito, nem beleza, nem nada.
Pelo gosto da Prefeitura acabaríamos na infinita palermice de
um carnaval de Buenos Aires, com aqueles funcionários
municipais fazendo préstitos e a multidão aborrecida e enorme.
Mas no seio do povo rebentam as imaginações como flores de
loucura, esses sambas chorando, esses batuques heróicos,
essa invenção incessante onde se despeja toda a fantasia, toda
a tristeza, toda a opressão dos homens.
Bem-aventurados os que fazem o carnaval, os que não fogem
nem se recolhem, mas enfrentam as noites bárbaras e acesas,
bem-aventurados os gladiadores e Césares e chiquitas e
baianas, e que a vida depois lhes seja leve na volta do sonho
em que se esbaldam!
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