CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY A memória é uma ilha de edição - um qualquer passante diz, em um estilo nonchalant, e imediatamente apaga a tecla e também o sentido do que queria dizer. Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser levado junto de roldão. Onde e como armazenar a cor de cada instante? Que traço reter da translúcida aurora? Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas? O perfume, acaso, daquela rosa desbotada? A vida não é uma tela e jamais adquire o significado estrito que se deseja imprimir nela. Tampouco é uma estória em que cada minúcia encerra uma moral. Ela é recheada de locais de desova, presuntos, liquidações, queimas de arquivos, divisões de capturas, apagamentos de trechos, sumiços de originais, grupos de extermínios e fonogramas estourados. Que se importa se as cinzas restam frias ou se ainda ardem quentes se não é selecionada urna adequada, seja grega seja bárbara, para depositá-las? Antes que o amanhã desabe aqui, ainda será esquecido o que traz a marca d'água d'hoje. Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto os cães fila do tempo fazem arquipélago de fiapos do terno da memória. Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos. Numerosas crateras ozoniais. Os laços de família tornados lapsos. Oco e cárie e cava e prótese, assim o mundo vai parindo o defunto de sua sinopse. Sem nenhuma explosão final. Nulla dies sine linea. Nenhum dia sem um traço. Um, sem nome e com vontade aguda, ergue este lema como uma barragem anti-entropia. E os dias sucedem-se e é firmada a intenção de transmudar todo veneno e ferrugem em pedaços do paraíso. Ou vice-versa. Ao prazer do bel-prazer, como quem aperta um botão de mesa de uma ilha de edição e um deus irrompe afinal para resgatar o humano fardo. Corrigindo: o humano fado. Waly Salomão em "Algaravias" |
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sábado, 16 de outubro de 2010
Wally Salomão
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