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quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Coisas abomináveis

                                              Paulo Mendes Campos

       Sem dizer das outras 8.329 coisas abomináveis, das quais não tenho tempo de me lembrar neste instante, eu denuncio na vida moderna os seguintes crimes contra a criatura humana: sala de espera de ministério público, de autarquia, de banco, sobretudo quando uma réstia de sol morno e antipático bate em nossa cara; atraso de avião, para reparos no motor, sobretudo quando se está sozinho em aeroporto estrangeiro, com um alto-falante incompreensível em qualquer idioma; trem que atrasa na própria estação de partida, sobretudo da Estrada de Ferro Central do Brasil no primeiro dia de carnaval (isto já me aconteceu, é claro); menino de nariz sujo (menina então nem se fala); gol do América no último minuto contra o Botafogo ou gol do Escurinho de pé direito; preencher aquele formulário hermético e algébrico da Divisão do Imposto de Renda, sobretudo quando não se tem renda, mas vai pagar assim mesmo; a penúltima hora em qualquer viagem e em qualquer tipo de transporte; torneiras secas há mais de três dias (todo carioca contemporâneo tem crédito no Paraíso); verificar que o prato pedido no restaurante está intragável; garçom que fica malcriado quando quer gorjeta além dos 10% já incluidos na conta; uísque ostensivamente falsificado; domingo às seis horas da tarde, sobretudo se há resenha esportiva, mas a televisão está enguiçada; técnico de televisão; anúncio de televisão; Marconi; buscar um registrado no Colis Postaux; desembaraçar bagagem na alfândega; delegacia de polícia, em qualquer circunstância; prostituta sem dentes; falso malandro; falso valente; sujeito falsamente importante; fila de elevador e elevador propriamente dito; bafo de respiração em nossa nuca dentro do elevador; um arábe (dizia Ovalle) vestido a caráter dentro de elevador; enguiço de elevador e a gente lá dentro; moça que não sabe que mulher só pode falar um palavrão por semana; aviso de banco; gerente de banco (o subgerente é pior) quando nos diz com sarcasmo: "Sempre os eternos 10%!"; tinta quando acaba se a gente já está enchendo a promissória (tem de pedir a caneta do gerente emprestada); pobre bajulando rico; rico bajulando pobre; rir com exagero da anedota contada pelo patrão; campainha de telefone de madrugada; esperar um telefonema com ansiedade e, vai atender, é engano; enfarte de pessoa da nossa idade; caixa, quando nos diz para passar no dia seguinte (no dia seguinte talvez ele nos pague, mas com uma cara enjoadíssima de quem concede um favor excepcional); cachorro latindo em nossas pernas; quintal com papagaio e macaco; discurso em geral, mas, notadamente, os empolados e compridos; cara de falsa modéstia; tratar de papéis para a compra de imóvel; processo na Caixa Econômica; eletrola quando fica biruta; vacina antivariólica; rumores de epidemia de varíola; apartar briga em espanhol; brigar em francês; amar em alemão; ser puxado por alguém para dançar; enjôo de mar (mais forte que amor de mãe, diz Gilberto Amado); jornal largando tinta; pagar a mesma conta duas vezes (o poeta Keats refere-se a isso com uma sacrossanta indignação); acordar com gripe; dor de dente, sobretudo depois de trinta anos; poesia declamada por mulher gorga ou magra demais; chapéu à nossa frente no teatro; jantar perto de pessoa que nos vai devorando as fritas; quer me dar só uma pontinha de bife?; ser chamado de bichão ou batuta por pessoa que não tem intimidade conosco; beliscão; o segundo beliscão; practical jokes, sobretudo se o idioma é do Texas; topada; agentes de seguros (porque evidentam dizer-nos a palavra morte e só pensam nisso); conta de boate, sobretudo quando o cavalheirismo nos obriga a pagar sem checar o roubo; policial empurrando a gente de leve (com força é mais que abominável); batedores de motocicleta, sobretudo no verão, no dia que a gente não tomou banho porque faltou água; os serviços em geral da Companhia Telefônica; a telefonista-chefe do serviço interurbano; demora aproximada de seis horas porque há alguns circuitos com defeito; precisar inadiavelmente de táxi em noite de chuva; esquecer a carteira em casa; perder cardeneta de endereços; isqueiro quando acaba o fluido mas há ainda uma tênue esperança; perder dinheiro; achar dinheiro e o dono aparecer na mesma hora; comerciante quando nos aconselha a comprar logo porque vai subir de preço; chimpanzé metido a besta; araponga em tarde de dor-de-cotovelo; serra circular em dia de ressaca; ressaca em dia de serra circular; queda ridícula em via pública; estar com vontade de fumar e nem o motorista do táxi tem fogo; amigo que não compra cigarros para fumar pouco; ser apresentado mais de 13 vezes a uma mesma pessoa; não reconhecer uma pessoa que já nos foi apresentada; pessoa que nos diz você não se lembra de mim, e não conta; batida de automóvel na hora do engarrafamento; mão suada; festas juninas; sujeito que adora falar mal língua estrangeira; sujeito que fala bem demais língua estrangeira; mulher feia falando mal de mulher bonita; o abominável homem das neves.

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