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quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

VOTOS PARA O ANO NOVO

os cronistas mais organizados costumam escolher, no fim de ano, os dez melhores, os dez maiores, os dez mais isto ou aquilo do ano que passou. Essas escolhas públicas não têm a o encanto das escolhas particulares, feitas em uma pequena roda, em que costuma decidir, depois de severos debates, qual foi o maior "fora", o pior vexame, o melhor golpe do baú, o maior chato do ano, a mais bela dor-de-cotovelo, o mais louvável infarto do miorcádio, o party mais fracassado, a cena  mais ridícula, o marido mais manso etc. Note-se que para a escolha deste último deve-se levar em conta que há muitos cavalheiros que não podem ser aceitos no páreo, devem ser considerados hors-concours. É preciso incentivar os novos valores.

*
 
   Depois desse salutar exercício, proponho que cada pessoa faça um exame de consciência e pergunte a si mesma com que direito se avora em juiz dos outros. Pense nos seus próprios pecados, nos seus próprios ridículos. Procure ver a si mesmo como se fosse alguém a quem quisesse ridicularizar. Como seria fácil! Quem sabe que a virtude de que você mais se envaidece é menos uma virtude do que medo da polícia, ou, mais comumente, do ridículo?
   Dizem que o cirme não compensa. E a virtude, compensará? Espero que sim; mas talvez só no outro mundo. Neste aqui não sei; mas conheço pessoas virtuosas que me parecem tão azedas, tão infelizes, tã entendiadas, tão sem graça com a própria virtude que dão vontade da gente dizer:
   - Está muito bem, nossa amizade, você é formidável. Mas assim também enoja. Peque pelo menos uma vezinha, sim? É bom para relaxar.
 
*
 
   Raul de Leoni sonhava com... "um cristianismo ideal, que não existe, onde a virtude não precisasse ser triste, onde a tristeza fosse um pecado venial..."
   Acho que a pessoa querer buscar a felicidade em pecados e sujeiras só não é um erro quando a pessoa tem muita vocação para essas coisas. A maoir parte dos sujos tem uma inveja secreta dos honrados, dos limpos. Sofre com isso. Sofre tanto quanto os que vivem atrás do gabarito da própria virtude.
 
*
 
   Desejo a todos, no Ano-Novo, muitas virtudes e boas ações e alguns pecados agradáveis, excitantes, discretos, e principalmente, bem-sucedidos.
 
 
Rubem Braga



sábado, 24 de novembro de 2012

WALY SALOMÃO

POR UM NOVO CATÁLOGO DE TIPOS


Por aqui tem feito D dias lindos
Procurar um outro AR
                 ALTERAR
E o meu ser se esgota na procura patológica
Do que nem sei que é
E esse é
Não há nunca
Em parte alguma
Prazer algum
Mantra mito nenhum
Que me
                        Baste.

ALTERAR



(1974 - Revista Pólem)

sábado, 20 de outubro de 2012

O Bobo

O bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo, estou pensando".

Ser bobo, às vezes, oferece um mundo de saídas, porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, espontaneamente lhe vem a ideia.

O bobo tem oportunidade de ver coisas que os espertos não vêem. Os espertos estão sempre tão atentos às espertezas alheias, que se descontraem diante dos bobos, e estes os vêem como simples pessoas humanas. O bobo ganha utilidade e sabedoria para viver. O bobo nunca parece ter tido vez. No entanto, muitas vezes, o bobo é um Dostoievski.
...

A vantagem de ser bobo é ter boa-fé, não desconfiar, e portanto, estar tranqüilo, enquanto o esperto não dorme à noite, com medo de ser ludibriado. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo não percebe que venceu.

Aviso: não confundir bobos com burros. Desvantagem: pode receber uma punhalada de quem menos espera. É uma das tristezas que o bobo não prevê. César terminou dizendo a célebre frase: "Até tu, Brutus?"

Bobo não reclama. Em compesação, como exclama!

Os bobos, com todas as suas palhaçadas, devem estar todos no céu. Se Cristo tivesse sido esperto, não teria morrido na cruz.

O bobo é sempre tão simpático, que há espertos que tentam se passar por bobos. Ser bobo é uma criatividade e, como toda criação, é difícil. Por isso é que os espertos não conseguem passar por bobos. Os espertos ganham dos outros. Em compensação, os bobos ganham a vida. Bem-aventurados os bobos, porque sabem, sem que ninguém desconfie. Aliás, não se importam que saibam que eles sabem.

Há lugares que facilitam mais as pessoas serem bobas (não confundir bobo com burro, com tolo, com fútil). Minas Gerais, por exemplo, facilita ser bobo. Ah, quantos perdem por não nascer em Minas!

Bobo é Chagall,que põe vaca no espaço, voando por cima das casas. É quase impossível evitar o excesso de amor que o bobo provoca. É que só o bobo é capaz de excesso de amor. E só o amor faz o bobo."

(Clarice Lispector)

sábado, 29 de setembro de 2012

Rita


NO MEIO da noite despertei sonhando com minha filha Rita. Eu a via nitidamente, na graça de seus 5 anos.

   Seus cabelos castanhos - a fita azul - , o nariz reto, correto, os olhos de água, o riso fino, engraçado, brusco...

   Depois de  um instante de seriedade; minha filha Rita encarando a vida sem mêdo, mas séria, com dignidade.

   Rita ouvindo música; vendo campos, mares, montanhas; ouvindo de seu pai o pouco, o nada que êle sabe das coisas, mas pegando dêle seu jeito de amar - sério, quieto, devagar.

   Eu lhe traria cajus amarelos e vermelhos, seus olhos brilhariam de prazer. Eu lhe ensinaria a palavra cica, e também a amar os bichos tristes, a anta e a pequena cotia; e o córrego; e a nuvem tangida pela viração.

   Minha filha Rita em meu sonho me sorria - com pêna deste pai, que nuca a teve.

 

Rubem Braga - Janeiro, 1955

sexta-feira, 15 de junho de 2012

ALMOÇO MINEIRO


   Éramos dezesseis, incluindo quatro automóveis, uma charrete, três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente da Marinha, um tenente coronel da Força Pública, um empresário do cassino, um prefeito, uma senhora loura e três morenas, dois oficiais de gabinete, uma criança de colo e outra de fita cor-de-rosa que se fazia acompanhar de uma boneca.
   Falamos de vários assuntos incofessáveis. Depois de alguns debates ficou assentado que Poços de Caldas é uma linda cidade. Também se deliberou, depois de ouvidos vários oradores, que estava um dia muito bonito. A palestra foi decaindo, então, para assuntos muito escabrosos: discutiu-se até política. Depois que uma senhora paulista e outra carioca trocaram idéias a respeito do separatismo, um cavalheiro ergueu um brinde ao Brasil. Logo se levantaram outros, que infelizmente, não nos foi possível anotar, em vista de estarmos situados na extremidade da mesa. Pelo entusiasmo reinante supomos que foram brindados o soldado desconhecido, as tardes de outono, as flores dos vergeis, os proletários armênios e as pessoas presentes. O certo é que um preto fazia funcionar sua harmônica, ou talvez a sua concertina, com bastante sentimento. Seu Nhonhô cantou ao violão com a pureza e a operosidade inerentes a um velho funcionário municipal.
   Mas nós todos sentíamos, no fundo do coração, que nada tinha importância, nem a Força Pública, nem o violão de seu Nhonhô, nem mesmo as águas sulfurosas. Acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio e tão suave que todos imaginamos que seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína. O tutu era um tutu honesto, forte, poderoso saudável.
   É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns louros, outros mulatos. Uns estavam molinhos, quase simples gordura. Outros eram duros e enroscados, com dois ou três fios.
   Havia arroz sem colorau, couve e pão. Sobre a toalha havia copos cheios de vinho ou de água mineral, sorriso, manchas de sol e a frescura do vento que sussurrava nas árvores. E no fim de tudo houve fotografias. É possível que nesse intervalo tenhamos esquecido uma encantadora linguiça de porco e talvez um pouco de farofa. Que importa? O lombo era o essencial, e a sua essência era sublime. Por fora escuro, com tons de ouro. A faca penetrava nele tão docemente como a alma de uma virgem penetra no céu. A polpa se abria, levemente enfibrada, muito branquinha, desse branco leitoso e doce que têm certas nuvens às quatro e meia da tarde na primavera. O gosto era de um salgado distante e de uma ternura quase musical. Era um gosto indefinível e puríssimo, como se o lombo fosse lombinho da orelha de um anjo ouro. Os torresmos davam um toque marítimo, salgados e excitantes da saliva. O tutu tinha o sabor que deve ter, para uma criança que fosse gourmet de todas as terras, a terra virgem recolhida muito longe do solo, sob um prato cheio de flores, terra com perfume vegetal diluído mas uniforme. E do prato inteiro, onde havia um jogo ameno de cores cuja nota mais viva era o verde molhado da couve - do prato inteiro, que fumegava suavemente, subia para nossa alma um encanto abençoado de coisas simples e boas.
   Era o encanto de Minas.
São Paulo, 1934.

sábado, 19 de maio de 2012

Epitáfio

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
de todas as mulheres
E morreu no mar.

Vinícius de Moraes, 1939


terça-feira, 1 de maio de 2012

DA VULGARIDADE DAS MULHERES

   DEUS sabe que no fundo de meu coração eu nada tenho contra as mulheres, que na catedral de minh'alma elas estão colocadas, pelo amor ou pela amizade, em altares de prata e ouro, coroadas de flores de ternura e adoração; Deus bem sabe.
   Mas não desçamos ao fundo dos sentimentos; sou um escritor superficial, o último talvez deste país cada dia mais transcendente e sublime; pois sempre que leio os novos sinto que eles são tão profundos que só caçam suas imagens com fuzis submarinos; seu traje de passeio, deles deve ser o escafandro. Essa comparação funciona dos pés a cabeça, com exceção dos óculos. Pois se o mergulhador moderno usa óculos que lhe permitem ver nítido o fundo do mar o escritor moderno usa óculos que lhe oferecem refrações e distorções infatigavelmente. Hoje é bem vulgar escrever "uma casa branca". A casa deve ser "desconsolada" ou "pálida" ou "morna" ou "inefável" ou "de nuvens oblongas" ou "mineral de malmequeres" ou o diabo que os carregue.
   Mas não falemos mal de nossos irmãos das letras; urge falar mal das mulheres já de natural desfrutáveis, como sejam senhoritas pedantes e velhotas gaiatas. O que vamos dizer se entende com todas e especialmente com as mais distintas, inteligentes, belas e superiores.
   Mas valerá a pena e será, pelo menos, justo? Isso me inquieta. É perante o espelho que a mulher engendra sua maior toleima. E que é o espelho da mulher? O homem é o espelho da mulher. A vulgaridade talvez seja toda nossa. Nem sempre, é verdade. Não fomos nós os homens, que inventamos, a esta altura dos acontecimentos, a saia nas canelas. A culpa aí é da impotência imaginativa, do esgotamento profundo de alguns indivíduos do sexo intermediário residentes em Paris. Da Austrália a Bangu milhões de senhoras e senhoritas apressaram-se a adotar essa moda, que prejudica as pernas bonitas e faz ridículas as feias. Amanhã "eles" resolverão que as nossas damas devem pintar as unhas de amarelo e ninguém discutirá. Toda a discussão será entre o amarelo-canário, o amarelo-fulvo, o amarelo-gema e o amarelo-sezões - mas todas, todas as mulheres, até as mais dignas, até as mais sadias, até as mais honradas, terão as unhas amarelas.
   Não importa que eu não goste, você deteste e aquele outro ache horrível. Não é para mim, nem para você, nem para ele que a mulher faz essas coisas ridículas. É para nós, os homens em geral. É para um tipo convencional de homem, um monstruoso tipo de homem inventado não sei onde, e que resume a vulgaridade de todos os homens - tudo que há de mais barato, de mais basbaque e de mais cretino na multidão dos homens. A mulher imediatamente rifa sua personalidade para agradar a esse homem-padrão, que em troca lhe dá mais olhares e assobios.
   Somos nós, talvez, um pouco mais dignos. Mandaram-nos do estrangeiro gravatas e calções de banho de mil cores, cheios de figuras, paisagens, borboletas e flores. Não tomamos conhecimento disso; permanecemos decentes e calmos no vestir. As mulheres seriam incapazes de uma tal dignidade. Colocariam uma flor vermelha atrás, à altura da anca direita - se vissem isso numa revista de modas.
   Algumas senhoras precisam pintar os cabelos, e não condeno as que fazem com descrição. Riscar sombrancelhas, dobrar cílios, lambuzar as pálpebras, acentuar as olheiras, tingir as unhas, a cara, a boca - tudo estaria normal se fosse uma delicada e discreta providência no sentido de corrigir algum desfavor da natureza ou injúria do tempo. Se fosse, em suma, um esforço no sentido da beleza normal. Mas o que acontece é o contrário. As mulheres que têm a beleza natural nesses detalhes passam a imitar a máscara idiota - brilhante, colorida, artificial e vulgaríssima, que é a máscara da moda. A que... agrada "aos homens".
   E isso tudo acaba entrando na própria alma. Um amigo me contou ter conhecido uma mulher que tinha a alma de artista de cinema. Já que os homens adoram as artistas de cinema, deve ter refletido ela (e talvez, em toda a sua vida, só tenha se dado ao trabalho de refletir isso) - sejamos assim. Meu amigo conta: "Ela sorria com um certo mover de cabeça de Ingrid Bergman, tinha uma crise histérica e chorava desesperada como Bete Davis, e afinal me perdoava como Joan Crawford e me beijava como Lana Turner.
   Era uma  viciada que toda noite se metia numa sala escura - e quando a fita acaba saém para a rua como se entrassem para a tela; começam a fazer fita por conta própria. Quantas dessas madames bovarys de sessão das oito não andam por aí disfarçadas de gente?
   Não é, portanto, a arte que imita a natureza, nem o contrário. Acontece que a natureza imita... a imitação da natureza. É dentro do círculo idiota dessa paródia de beleza que a mulher de hoje aperfeiçoa sua vulgaridade internacional. Para isso ela perde o respeito pelo ritmo sagrado de sua própria beleza.
   Não tenho nada contra as girls americanas. (Pelo contrário, ah, tão pelo contrário!) Dentro da vulgaridade de suas repetições, elas têm bons elementos do clássico moderno. Mas as girls são como as vacas holandesas ou os bois shorthorn ou as árvores padronizadaas das ruas. São criaturas vivas selecionadas de acordo com certas qualidades específicas para um fim específico: dar mais leite ou mais carne ou mais sombra. São plantas ou animais cultivados artificialmente com finalidade única: são para um show. Isso limita severamente o tipo de sua beleza, ao mesmo tempo que o apura até o ideal - mas uma mulher de outro tipo de beleza que as imita é como um touro de corridas que usasse enormes orelhas postiças para imitar o zebu.
   Se você manda construir um barco de corridas de modelo regulamentar, dentro das regras e especificações próprias, está muito bem. Mas se você faz isso para pescar ou transportar bananas - você faz exatamente como a mulher que abdica da dignidade própria de seu tipo de beleza para se padronizar como a girl.
   É essa mentalidade de show que predomina.
   Predomina nas ruas, na hora mais vulgar, na vida mais sentimental mais barata e superficial. Os  homens adoram o show - como show: mas cada homem ama a sua mulher normal, feita de boa carne pessoal, do bom osso pessoal, e das curiosas cartilagens, e das encantadoras mucosas,  profundamente pessoais e intrasferíveis por mais que elas pelejem contra si mesmas com o seu espantoso gosto da vulgaridade.

Março, 1949.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

POÉTICA

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem-comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente e manifestações de apreço ao sr. diretor

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
Do lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo.

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar as mulheres, etc.

Quero antes o lirismo dos  loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clows de Shakespeare

-Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

sábado, 31 de março de 2012

Manuel Bandeira sim, Manuel Bandeira mesmo, Manuel Bandeira muuuito!

Mulheres

Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isso:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.

Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! fraco!
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...´

És linda como uma história da carochinha...
E eu preciso  preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro detrás de casa e tinham cara de pau).


Mais uma folheada no livro de poesias

O CACTO

Aquele cacto  lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constragido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados,
Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra
de feracidades excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pelo raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fornteiro,
Impediu o trânsito de bondes,  automóveis,  carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quantro horas privou a cidade de iluminação e energia:
-Era belo, áspero, intratável.

quarta-feira, 14 de março de 2012

Mais Manuel Bandeira


A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer o teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda.
- Sem deixar sequer esse nome.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A MULHER ESPERANDO O HOMEM

     O tema da mulher esperando o homem há muito, muito tempo me fascina; sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de romance, talvez quadro de pintura, talvez música. E eu que não sei fazer nada disso sou, entretanto, perseguido por histórias de mulher esperando homem, das mais banais às mais terríveis.
     Agora mesmo, quando passou o aniversário da revolução húngara, eu me lembrei que de todos os relatos, alguns dolorosos, horríveis, de gente que fugiu da Hungria, havia o de uma mulher que contou com simplicidade sua história; e foi o que mais me impressionou quando o li, de madrugada, no meu quarto de hotel em Nova York. O marido saíra para a revolução e lhe disse que ela não saísse de casa de maneira alguma, esperasse sua volta. Chegou a noite e ele não veio; passou a noite inteira acordada, e ele não veio; no outro dia entraram na rua tanques russos atirando, e veio outra vez a noite, e veio outro dia, e veio outra noite, e ela esperando; cochilava um pouco sentada, acordava assustada julgando ouvir os passos ou a voz dele, até que chegou por um parente a notícia de que ele morrera.
     Ela então saiu de casa e - “como eu não tinha mais nada que esperar”, segundo disse - fugiu para a fronteira da Áustria.
     Não sei por que, achei que essa mulher sentiu um alívio ao saber que não devia esperar mais; acontecera, naturalmente, o pior. Mas a angústia de esperar cessara.
     O homem ausente era como um carcereiro que a prendia no lar transformado em câmara de torturas. Ela agora estava desgraçada, mas livre.
     Mas não é preciso haver guerra nem nenhum perigo; nesta madrugada em que escrevo, em Ipanema, quantas mulheres não estarão esperando os maridos? Aquela pequena luz acesa em um edifício distante é talvez o apartamento da mulher insone que já telefonou meio envergonhada para várias casas amigas perguntando pelo marido, que já olhou o relógio vinte vezes e tomou comprimido para dormir, ligou a Rádio Relógio, tentou ler uma revista velha, fumou quase um maço de cigarros.
     Não importa que seja a esposa vulgar de um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também completamente vulgar. Neste momento ela é a mulher esperando o homem; e todas as mulheres esperando seus homens se parecem no mundo, e se ligam por invisível túnel de solidariedade que atravessa as madrugadas intermináveis.
     Todas: a mulher do pescador, a mulher do aviador, e a do revisor de jornal, a do milionário e a do ministro protestante…
     Devia haver um santo especial para proteger a mulher esperando o homem, devia haver uma oração forte para ela rezar; ela está desamparada no centro de um mundo vazio.  
    Ela começa a odiar os móveis e as paredes; a torneira da pia lhe parece antipática; a geladeira, que aliás precisa ser pintada, é estúpida, porque ronca de repente e depois o silêncio é mais quieto. A cama é insuportável.
     Devia haver um número de telefone especial para a mulher que está esperando o homem chamar, reclamar providências, ouvir promessas, insistir, tocar outra vez, xingar, bater com o fone. Devia haver funcionários especiais, capazes de abastecer essa mulher de esperança de quinze em quinze minutos, jurar que todas as providências já foram tomadas, “estamos seguros de que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à senhora…”
     E diria que pelo menos no necrotério ele não está, nem no Pronto socorro, nem em delegacia nenhuma; mas não diria isso de uma só vez, e sim através de informes espaçados, que fossem formando etapas de ansiedades, que quadriculassem lentamente a insônia.
     A mulher que está esperando o homem está sujeita a muitos perigos entre o ódio e o tédio, o medo, o carinho e a vontade de vingança.
     Se um aparelho registrasse tudo o que ela sente e pensa durante a noite insone, e se o homem, no dia seguinte, pudesse tomar conhecimento de tudo, como quem ouve uma gravação numa fita, é possível que ele ficasse pálido, muito pálido.
     Porque a mulher que está esperando o homem recebe sempre a visita do Diabo, e conversa com ele. Pode não concordar com o que ele diz, mas conversa com ele.
(Rubem Braga – Novembro 1957)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

BAR TITI - Carnaval de Diamantina

Tem um tititi rolando no ar de Diamantina. Acabou-se a rave na Baiuca, você consegue andar enquanto a Barturcada toca "Minha pequena Eva."e em seguida se despede, o sol já nasceu e foi cinzento como muitas vezes em Diamantina, ainda tem pique, ou como eu acabou de chegar, se escuta as pessoas falando: -Vamos ao bar do Titi. É o famoso carnaval 24 horas de Diamantina.

Veja mais fotos e comentários clicando no marcador: BAR TITI

Descendo a rua de trás do mercado, siga a multidão.

Eu amo essa mulher.Toca demais, ouvi dizer que está tocando em BH direto.

Foi o melhor eletrônico que eu escutei nesse carnaval.

Olha lá a torre da igreja matriz.

Homens amarelos. Se deixando levar pelo som.

Eu vi o Nando Reis lá, trajava uma blusa do Bob Marley e um boné daqueles imensos azul.

Fica lotado.

Eu tive uma calçada lá.

Ouh galera! Muito sol, vai preparado, voltei todo queimado, meu lábio tem bolha. Muito sol e o som dura até umas 3. Os nêgo frita.

E dá vontade de ficar até as 3.

3 DJ's os dois primeiros de eletrônico, o último de funk. Lá no bar tem cerveja 5 X R$10,00

E se o melhor eletrônico do mundo rola na Baiuca...

o melhor funk do Brasil rola no BAR TITI no carnaval.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Não sei dançar - Manuel Bandeira

Uns tomam etér, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Tenho todos os motivos menos um de ser triste.
Mas o cálculo das probalidades é uma pilhéria...
Abaixo Amiel!
E nunca lerei o diário de Maria Bashkirtseff.

Sim, já perdi pai, mãe, irmãos.
Perdi a saúde também.
É por isso que sinto como ninguém o ritmo do jazz-band.

Uns tomam etér, outros cocaína.
Eu tomo alegria!
Eis aí por que vim a este baile de terça-feira gorda.
Mistura muito excelente de chás... Esta foi açafata...
- Não, foi arrumadeira.
E está dançando com o ex-prefeito municipal.
Tão Brasil!

De fato este salão de sangues misturados parece o Brasil...
Há até a fraçaõ incipiente amarela
Na figura de um japonês.
O japonês também dança maxixe:
Acugêlê banzai!
A filha do usineiro de Campos
Olha com repugnância
Para a crioula imoral.
No entanto o que faz a indecência da outra
É dengue nos olhos maravilhosos da moça.
E aquele cair de ombros...
Mas ela não sabe...
Tão Brasil!

Ninguém se lembra da política...
Nem dos oito mil quilômetros de costa...
O algodão de Seridó é o melhor do mundo... Que me importa?
Não há malária nem moléstia de Chagas nem ancilóstomos.
A sereia sibila e o ganzá do jazz-band batuca.
Eu tomo alegria!

Petrópolis, 1925

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A MÔÇA DO CARNAVAL

MINHA amiga Lila Bôscoli, que faz com muita eficiência e graça a crônica feminina de Última Hora do Rio, telefonou outro dia para saber o que eu achava da mulher foliona. Ela se referia a essa que dança cantando, de braços abertos, no salão ou encima da mesa, nos bailes de carnaval. Pela maneira de Lila fazer a pergunta percebi que ela esperava que eu "pixasse" a foliona. Pois respondi com sinceridade: "adoro".
   Lila acha que há falta de linha e exibicionismo nessa maneira de brincar. Exibicionismo ou "se-mostração", como dizia Mário de Andrade,´há muito no carnaval; mas o que em outras ocasiões é ridículo e de mau-gôsto, no carnaval fica sendo engraçadoe bem. É próprio do espírito carnavalesco a pessoa perder o mêdo ao ridículo que a inibe o ano inteiro, se soltar, se espalhar, se exibir. Já reconheci muita môça bonita, de ar sério e recatado, que passa o ano inteiro cultivando o mito da própria alticez e no carnaval se veste de prata, de escrava ou de havaiana e se esbalda, sorrindo e rebolando para todos, cantando as letras maliciosas, saltando durante horas em volta do salão, em cima da cadeira ou da mesa.
   Sim, adoro a mulher fantasiada, porque a sua beleza ganha uma graça nova, ineperada, uma como que verdade superior, uma completação de sonho. Nunca vi mulher tão bonita como mulher bonita em carnaval; o instinto a leva a se despir e vestir com a sabedoria do jôgo de espaços e carne e de côres, ela põe a imaginação a serviço do esplendor e da graça de si mesma. Ah, é uma grande coisa, o carnaval!
   Impossível negar o que há de sensualismo e de malícia em um baile de carnaval; mas exatamente nas grandes folionas é que essa malícia e esse sensualismo atingem um grau de gratuidade e de pureza, se desligam do prazer individual para ser uma integração na música e na alegria de todos, ela não tem par, ou não dá ao par nenhuma importância especial,  ela goza o prazer de todos e de si mesma, ela se entrega ao ritmo com uma espécie de devoção. Essa sim, essa é quem brinca o carnaval, é quem lhe dá o encanto e o prestígio, a ilusão, a misteriosa grandeza humana que outra festa nenhuma tem.
   Viva a môça do carnaval, a que se entrega tôda, braços abertos para o alto, à sua magia e ao seu generoso fascínio, viva a môça que avança no fervor das noites acesas de fevereiro, princesa de lantejoulas imortais, guereira de joelhos incessantes, e graça imperecível - viva para sempre, no seu minuto feliz de esplendor e alegria, a môça do carnaval!
  

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

A pele que habito

Um típico Almodóvar, onde a história muda de repente para um rumo que você não teria imaginado. Um filme de arte, com o colorido tradicional de suas películas, a beleza estética das obras de arte, a presença de uma peça musical, as personagens psicóticas, drogas, morte. Um típico Almodóvar, não o seu melhor, mas sempre digno de ser visto. Nota: 7,0.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Minha crônica preferida:

OS FÍCUS DO SENHOR

"É uma crônica de 1943 e não é tão inédita que não tenham sido publicadas em duas revistas. Mas ambas circulavam quase às ocultas e foram fechadas depois pelo governo. A crônica pode ser má, e creio mesmo que está mal escrita, de um modo diferente do meu modo costumeiro de escrever mal. Mas naqueles tempos já era grande coisa quando se conseguia escrever alguma coisa que não fosse louvaminhas ao Senhor; e quando se escrevia era ao mesmo tempo com raiva e contensão, duas circunstâncias que atrapalham qualquer estilo, e ainda mais o meu, que se atrapalha à toa. Talvez por isso mesmo reli com uma espécie de carinho e resolvi publicar outra vez."

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Ninguém pode amar mais do que eu essa cidade do Rio de Janeiro. Ó grande beleza de cidade, ó cidade que é vinte, trinta quarenta cidades imprevistas, uma infiltrada na outra, esta mais colonial que Ouro Preto, aquela mais nova que Goiânia, uma de alta montanha, uma de oeste de Minas, uma toda de praia, outra de casarões de arvoredo - ó ruas estranguladas entre mares e morros, recantos e esplanadas, cartões-postais baratos e segredos de esquinas sutis, avenidas afogadas em sol e ladeiras de húmus esquecidos - cidade de minhas tantas agonias e felicidades, palcos de velhas inquietações, canais de silenciosa aventura, blocos de cimento que me esmagaram, praças de humilhações, arrabaldes de exaltações líricas - minha medíocre história anda escrita em tuas ruas e nenhuma entre as cidades é mais formosa do que tu, nem sabe mais coisas de mim.
Entretanto muitas coisas em ti me aborrecem de maneira quase dolorosa - e nada em ti e em outra cidade me aborrece tanto quanto a humilhação do fícus.
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A cretinice é uma árvore chamada fícus. Um jardineiro sádico, de instintos miseráveis - um jardineiro que era bem, na sua crueldade e mesquinhez, o perfeito rei dos animais - inventou a degradação do fícus. Eis uma árvore. Se a deixais crescer, ela cresce. Não vos pede ajuda - quer apenas a terra, a água, o ar - e vai crescendo. E o tronco se projeta alto e grosso da base de um encordoamento enérgico de raízes encravadas no chão, e os galhos partem oblíquos, e vão lançando ramas, e eis uma árvore nobre entre as mais nobres, grande, bela e poderosa.
Mas o fícus é apenas um arbusto - o mesquinho rei dos animais e dos vegetais tem uma tesoura na mão. Esse arbusto jamais será uma bela árvore. Ide à Praça Paris, olhai o jardim, e tremereis de vergonha. Ali não há árvores. Há cubos, há caras de cão, pirâmides, paralelepípedos, poltronas, esferas; se quiserdes haverás telefones, sopeiras, cilindros, qualquer bicho e qualquer objeto, escarradeiras ou focas - tudo o que quiserdes. Basta ter na mão uma tesoura - e saber.
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Escrevendo outro dia a um velho amigo me ocorreu lembrar que os animais se domesticam facilmente com um chicote na mão direita e um torrão de açúcar na esquerda. Os vegetais querem tesoura e estrume. O homem é o rei da Criação.
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Entre os homens às vezes há reis. E quando é Rei de fato - eia, eis, alalá, heil, banzai! - quando é rei de fato com ou sem essas exclamações, ele monta a sua máquina de mandar. São máquinas monstros de mil compartimentos complexos - masmorras e picadeiros, com aparelhos de metralhadoras, microfones, casa de moedas e medalhas, jornais, uniformes, bandeiras, talentos, alicates de arrancar unhas e técnicos em festinhas escolares, foguetes, benemerências - se a quisésseis conhecer, toda essa engrenagem de aço e sentimentos, de ouro e vaidades, de bem-aventuranças fáceis e torturas facílimas, haveríeis de gastar uma vida, e não conseguiríeis. Afinal tudo é simples, tudo é chicote e torrão de açúcar, tudo é tesoura e estrume.
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Para uns é preciso que o chicote entre na carne, para outros basta que sibile no ar - para muitos basta que o chicote exista. Uns se jogam para lamber farelos de açúcar preto, outros recebem com ares de dignidade alvos tabletes refinadíssimos, uns se limitam a ficar mansos, outros aprendem proezas e dão espetáculos graciosos. E a degradação humana sob o fascismo ora é brutal ora é sutil - e se abre um estranho picadeiro de feras avacalhadas sob o mesmo círculo de assistência que se bestifica e abre um estranho picadeiro e bate palmas porque até o silêncio é um crime - e a floresta magnífica dos homens se muda em praça paris com sofás de fícus e caixas de pó-de-arroz de fícus, guarda-chuvas de fícus, toda uma alucinação idiota de formas obedientes e escravas - de fícus.
Cortai a tesoura e serrote as folhas e palmas de uma palmeira, cravai-lhe no tronco o machado - ela não vira borboleta, nem vaso, é uma palmeira que morre, uma coluna partida, pois a árvore mutilada guarda a sua dignidade de árvore. Sob qualquer fascismo há homens assim. E há outros que não são altos e fidalgos como esses mas na sua medíocre existência também resistem às humilhações com um obscuro instinto da luz e da altura e em cada ramo decepado a seiva incorruptível lança na mesma direção um renovo obstinado que a tesoura há de cortar outra vez. A tirania do jardineiro os mutila, eles não têm meio de reagir, são despojados de tudo menos a riqueza do cerne. Há os que se adaptam mas não se acostumam, se submetem mas não se servilizam, os vencidos jamais convencidos. E há os fícus.
Os que poderiam ser gigantes, e gostariam de ser gigantes e sentem com amargura e revolta o primeiro corte da tesoura. Mas o tempo passa, a vida é curta e a tesoura é certa. Então o desgraçado já não espera a tesoura. Ele mesmo fica sendo sua própria tesoura. Não é mais necessário que o oprimam de fora, ele se espreme por dentro e distribui a seiva para os galhos em curvas e todo se modela em forma de poltrona para o perfeito assento do Rei.
Que as forças mais profundas da terra se revelem numa espantosa arrebentação, num terremoto de raízes revoltadas, e a floresta dos homens se embebe com os uivos do vento e as águas da tempestade, e se contorça e se enfureça num bracejar medonho de galhos subitamente libertados e caia por terra, pisado e esmagado, o rei da tesoura e do estrume, do chicote e do torrão de açúcar. Não adianta. Aquele que fícus já viveu demais - e silenciosamente no recesso da floresta, ele continuará a alisar e proteger, numa luxúria de ramos curvos e folhagem macia, a imaginária bunda do Senhor.
Rubem Braga, agosto, 1946

29/01/2012 - Bonfinópolis de Minas