Terceira e última das 3 crônicas de Rubem Braga sobre o carnaval que vou publicar, a única que acho relevante mesmo mostrar, as outras são mais para formar o contexto, o velho Braga suga a alma do carnaval, que todos nós já sentimos. Você acredita que eu não achei o texto na internet e vou ter que digitar tudo.
Carnaval
Incipiente alegria na tarde carnavalesca. Os sambas passam nos automóveis abertos. Um vento beija a avenida larga, tremula nas serpentinas, rodopia nos confetes, caminha na voz das cantigas. As moças lindas, em fantasias de cores vivas e leves, vão com os cabelos alvoroçados pelo vento. Meu amigo comprou 200 gramas metálicas. Andou pelas ruas que se animavam. Encheu os bolsos de confetes. Foi andando...
E na boca da noite vieram cordões, ranchos, blocos, bandos. A multidão encheu as ruas que a noite engoliu. Mas as luzes rebentaram de todos os lados e a garganta da massa se abriu em delírio. Meu amigo foi andando. Apertou-se entre homens excitados e mulheres que cantavam e riam. Entrou na confusão das raças irmanadas pelo prazer comum da carne. Alguém lhe jogou confete na boca, lança perfume nos olhos. Uma serpentina bateu em seu nariz. Um reco-reco gritou em seu ouvido. Foi andando. Um automóvel do corso quase o esmagou. Uma mulher qualquer cantou a toa, para ele, uma frase de samba. Jogou um pouco de confete nos cabelos da mulher. Jogou-lhe éter no corpo. Ela defendeu-se e riu. Depois desapareceu arrastada. Meu amigo foi andando. Tinha um cravo na lapela, um cravo que tirara da mesa do restaurante. Uma mulher pediu a flor. Ele a encharcou de éter e fez presente. Foi andando. Automaticamente cantou sambas e marchas. Teve mil aventuras inconsequentes e rápidas. Um homem bêbado quis arrebatar o lança-perfume de sua mão. Foi andando, No meio de uma confusão No meio de uma confusão, recebeu e distribuiu socos e empurrões sem saber de quem, para quem, por que, nem para quê.
Meu amigo entrou no baile. Agarrou-se ao ombro de uma mulher e foi no cordão, dançando, cantando, suando. Repetiu três vezes com o mesmo par a marchinha do momento. apaixonou-se de repente por uma fantasia, por um corpo, por uma risada. Bebeu.
Meu amigo foi a outro baile.
De madrugada meu amigo saiu pela rua vazia, sem programa. Passavam os foliões cansados, as mulheres mais belas pela fadiga e pelo suor. Um homem grisalho carregava pelo braço um adolescente que se queixava de dor no pés. Meu amigo arranjou uma mulher: a mulher que sempre aparece. A mulher que não vimos na rua nem no baile e que aparece na mesa do restaurante, no último instante. Esguichou seu último lança-perfume nos braços e seios da mulher. Jogou os últimos confetes em seu cabelo. Ela repetiu um samba mil vezes repetido.
Foram. No caminho meu amigo parou. No canto da calçada, um menino sujo e esfarrapado dormia. Dormia sobre um saco cheio de serpentinas que juntara pra vender. Pararam. A mulher disse: coitadinho... Meu amigo olhou em silêncio o menino que dormia. Sentiu pena. Olhou a mulher. Balançou a bisnaga. Ainda havia um resto de éter. Jogou na perna da criança, que acordou assustada. A mulher disse: você é ruim! coitadinho... A criança ficou olhando estremunhada, resmungou um xingamento e tornou a dormir. Meu amigo jogou a bisnaga no asfalto. Sentia-se bêbado. Apertou a mulher contra seu corpo e mandou parar um automóvel que passava. No apartamento, antes de deitar-se, olhou-se no espelho do guarda-roupa. Fantasiado. Exausto. Beijou a mulher como se beija uma noiva. E pensou desanimado: eu sou um folião. Evoé!
-São Paulo , fevereiro, 1934
Rubem Braga em A borboleta amarela
Evoé: tradicional grito de evocação a Dioniso, deus do vinho
Carnaval
Incipiente alegria na tarde carnavalesca. Os sambas passam nos automóveis abertos. Um vento beija a avenida larga, tremula nas serpentinas, rodopia nos confetes, caminha na voz das cantigas. As moças lindas, em fantasias de cores vivas e leves, vão com os cabelos alvoroçados pelo vento. Meu amigo comprou 200 gramas metálicas. Andou pelas ruas que se animavam. Encheu os bolsos de confetes. Foi andando...
E na boca da noite vieram cordões, ranchos, blocos, bandos. A multidão encheu as ruas que a noite engoliu. Mas as luzes rebentaram de todos os lados e a garganta da massa se abriu em delírio. Meu amigo foi andando. Apertou-se entre homens excitados e mulheres que cantavam e riam. Entrou na confusão das raças irmanadas pelo prazer comum da carne. Alguém lhe jogou confete na boca, lança perfume nos olhos. Uma serpentina bateu em seu nariz. Um reco-reco gritou em seu ouvido. Foi andando. Um automóvel do corso quase o esmagou. Uma mulher qualquer cantou a toa, para ele, uma frase de samba. Jogou um pouco de confete nos cabelos da mulher. Jogou-lhe éter no corpo. Ela defendeu-se e riu. Depois desapareceu arrastada. Meu amigo foi andando. Tinha um cravo na lapela, um cravo que tirara da mesa do restaurante. Uma mulher pediu a flor. Ele a encharcou de éter e fez presente. Foi andando. Automaticamente cantou sambas e marchas. Teve mil aventuras inconsequentes e rápidas. Um homem bêbado quis arrebatar o lança-perfume de sua mão. Foi andando, No meio de uma confusão No meio de uma confusão, recebeu e distribuiu socos e empurrões sem saber de quem, para quem, por que, nem para quê.
Meu amigo entrou no baile. Agarrou-se ao ombro de uma mulher e foi no cordão, dançando, cantando, suando. Repetiu três vezes com o mesmo par a marchinha do momento. apaixonou-se de repente por uma fantasia, por um corpo, por uma risada. Bebeu.
Meu amigo foi a outro baile.
De madrugada meu amigo saiu pela rua vazia, sem programa. Passavam os foliões cansados, as mulheres mais belas pela fadiga e pelo suor. Um homem grisalho carregava pelo braço um adolescente que se queixava de dor no pés. Meu amigo arranjou uma mulher: a mulher que sempre aparece. A mulher que não vimos na rua nem no baile e que aparece na mesa do restaurante, no último instante. Esguichou seu último lança-perfume nos braços e seios da mulher. Jogou os últimos confetes em seu cabelo. Ela repetiu um samba mil vezes repetido.
Foram. No caminho meu amigo parou. No canto da calçada, um menino sujo e esfarrapado dormia. Dormia sobre um saco cheio de serpentinas que juntara pra vender. Pararam. A mulher disse: coitadinho... Meu amigo olhou em silêncio o menino que dormia. Sentiu pena. Olhou a mulher. Balançou a bisnaga. Ainda havia um resto de éter. Jogou na perna da criança, que acordou assustada. A mulher disse: você é ruim! coitadinho... A criança ficou olhando estremunhada, resmungou um xingamento e tornou a dormir. Meu amigo jogou a bisnaga no asfalto. Sentia-se bêbado. Apertou a mulher contra seu corpo e mandou parar um automóvel que passava. No apartamento, antes de deitar-se, olhou-se no espelho do guarda-roupa. Fantasiado. Exausto. Beijou a mulher como se beija uma noiva. E pensou desanimado: eu sou um folião. Evoé!
-São Paulo , fevereiro, 1934
Rubem Braga em A borboleta amarela
Evoé: tradicional grito de evocação a Dioniso, deus do vinho